20100725

Beitbridge, 03 de julho de 2010

o que são as luzes ao fundo?

“estás a ver aquelas luzes ali ao fundo? aquilo é a Africa do Sul”

há muito espaço entre as coisas em Beitbridge, parece que é assim uma terra meio coalhada, que alguém tentou misturar mas não deu, dispersa e sem harmonia. típico das cidades fronteiriças, diríamos que Beitbridge é assim desconfortável e fascinante ao mesmo tempo. não chega a ser intercultural, o espaço que existe entre as coisas é isso mesmo, fossos entre culturas e entre ideias. as pessoas em Beitbridge não se querem interseccionar, querem passar a ponte para a outra margem, a margem que tem luz.

parece que há muita coisa a acontecer debaixo dos nossos narizes, mas depois é tanto silêncio e ausência de movimento coerente, gente e coisas a fluir em todos os sentidos.

obviamente será difícil criar raizes e rotinas quando se está de passagem – e os embondeiros aqui tão grandes e há tanto tempo residem que devem achar tudo isto muito estranho. fugidias as gentes e os carros; todos parecem estar de passagem em beitbridge, tudo efémero a passar-se entre as rodas dos carros e o asfalto recente, no momento em que se tocam. breve,

e de facto a imagem que transparece é esta de uma luz automóvel vir do outro lado da estrada e a silhueta encurvada de uma pessoa que caminha na direcção referida. Nao há muito mais para referir neste preciso momento, nem sequer uma história, já foi, já era, não se sabe nem quando nem porquê, e já ninguém se lembra

na Estrada durante o dia veem-se carros amontoados de coisas de casa, aceleram no asfalto enquanto podem até chegarem às estradas de terra vermelha dos sítios de onde vêm. Joanesburgo vai enviá-los de volta para casa de mãos vazias e casas queimadas – dizem. África do sul, terra de luz e de chama lá ao fundo e do medo da xenofobia. E as nações celebram a magia do futebol e o que pode fazer por Africa.

ambiente de fim de festa.

há um cheiro insuportável a urina e a vómito – alguém esvazia a bexiga sem pudor em frente a uma parede do lado de for a da casa. mulheres a vender cigarros, ovos, preservativos, tudo milimetricamente disposto e cima de uma caixa de cartão voltada ao contrário.

sentadas nelas ou no chão ou em bancos improvisados com lixo acumulado a 20 metros de distância, sós ou acompanhadas de outras mulheres e honestamente, não consigo descrever o olhar.

tento retrospectivar, identifico, mas porque não entendo, não assumo nada, nem julgo, porque não sei do que se trata. nem creio que olhares se possam assim descrever em palavras, especialmente os olhares alheios, digo, demasiado subjectivo e depois, quem olha para os olhos não olha para dentro e a treta do espelho da alma foi criada para ficar bem em crónicas de revista, na realidade não resulta.

conformadas, posso supôr. ou ansiosas. podem ser ambas as coisas, já que do olhar não lhes tiro nada, posso imaginar que estejam algures entre estes dois extremos. deixa-me segura esta certeza de que estão entre algo e algo que reconheço . na verdade é ridícula a necessidade que temos de ter certeza das coisas, alias, é isso, aqui respira-se atmosfera de incerteza crónica, mas ninguém parece muito preocupado com isso.

conformadas, de um dos lados da linha, e o conformismo é uma doença. Não só de algumas geografias, afecta-nos a todos, e às vezes pode ser a única forma de sobreviver a situações-limite, quer seja no conforto ocidental – e acidental – das sociedades do norte, quer seja algures entre a Africa do Sul e o Sul do Zimbabwe, a terra onde se diz que todos perderam a esperança.

fogos acesos no meio do nada, aquecem estas mulheres e estes homens que dormem sempre a esperar que a espera lhes traga melhores dias – deste lado da ponte ou do outro.

“não vendem só ovos, tabaco e preservativos, vendem outras coisas tambem. Os ovos, o tabaco e os preservativos são uma desculpa, um understatement. São prostitutas.”

há homens numa roda de cabeça baixa, pessoas que riem alto.

e honestamente nao vejo muita diferença entre estas pessoas e as pessoas nas cidades de onde venho. digo,

faríamos o mesmo, e é por isso que nos amedronta, que nos impressiona. as fotografias não saem bem. as únicas fotografias que tenho de Beitbridge são na Estrada de terra que dá para o norte, com embondeiros por toda a parte.

é por isso que gosto de Beitbridge. não há redoma de vidro a separar as pessoas de um lado das pessoas do outro.

pode acontecer-nos a todos, e todos encontraríamos uma forma de sobreviver, quer fosse conformista, anarca ou ansiosa. a única coisa que se pode concluír é que sobrevivem sempre os mais fortes. os que conseguem atravessar a ponte e os que deste lado, vendem o que podem. tudo, até a alma que não se vê pelo olhar.

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