20100702

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Nao me lembro quando é que começou, ou pelo menos a idade exacta é uma ideia que se me foge da memoria --

.Não sei se todas as crianças sentem aquilo que sentia quando ia para a cama à noite e imaginava que um certo dia acordava em cima de uma tábua de madeira no meio do mar. .E que, pouco a pouco, não sei muito bem como nem com a ajuda de quem, conseguia recomeçar tudo de novo e sobreviver. A verdade é que nunca me consigo lembrar se havia um motivo para as coisas todas terem desaparecido, não havia referência a laços nem a perdas, só que tinha de iniciar a recolecção e construção de uma qualquer vida que imaginava cada dia.

Depois cresci, ..vi a Pequena Sereia e fazia apneias na banheira e na praia de galapos a ver se me crescia uma cauda género dourada. Parece-me então um mundo demasiado injusto, e debaixo do mar tudo se revela tão azul, límpido e silencioso. Depois de aprender básicos de física na escola, descubro então que parece que o som se propaga melhor dentro de água por causa da densidade e imaginei que se tivesse gritado mais alto da praia do creiro – que tem menos interferência do ferry boat que vai para troia – o rei tritão me tinha ouvido.

No liceu disseram-me que era muito mais fácil tomar ácidos. Nunca tentei, tinha medo dos ataques de pânico.

E depois de deixar de querer ser mulher-peixe, decidi querer ser médica. Demorei mais tempo a perceber que não era bem isso que queria – comparado com o tempo que andei de jangada no mar e a querer ter guelras. Agora queria um estetoscópio

pendurado no pescoço [ quando as minhas amigas queriam colares da parfois do metro da alameda – ] e nada me demovia da necessidade vital de ter 20 a biologia e a química no exame nacional. Tive crise da adolescência enquanto aprendia o reino animal e estudava a espermatogénese das alforrecas. Escrevia muitas coisas que hoje em dia não me fazem absolutamente sentido nenhum – a sério, havia vezes em que usava tempos verbais desconhecidos – e o pior é que o fazia conscientemente, género rebeldia literária [se não estupidez temporária antes].

Obviamente

e por mais paroxetina que me prescrevesse o neurologista, não fui capaz de entrar em medicina -

e pior a emenda que o soneto, fui ser enfermeira, curso tirado ao lado do hospital de santa maria, a passar em frente ao doutor egas moniz todos os dias, um ano, trezentos e sessenta e cinco chicotadas nas costas, ao estilo Indiana jones e o templo perdido, incluindo o vilão que estropeia o peito às pessoas para lhes arrancar o coração em pankot palace.

Só que era na avenida das forças armadas, em lisboa, e foi durante dois anos, entre desgostos amorosos, ataques de pânico no comboio da ponte, muitos cigarros por dia e trabalhos precários para pagar bilhetes para o paredes de coura e afins.

Lembro-me quando tudo fez sentido em três alturas.

| Na primeira vez que vi um bebé a nascer no hospital são franciso Xavier|

| Quando entrei numa casa de 50 metros quadrados num bairro social em Chelas zona H e naquele buraco fedorento viviam 11 pessoas, 9 crianças. |

|e no dia em que percorri Camden Street em Dublin com quatro cópias da minha tese de mestrado na mão. |

muitos mais outros acontecimentos me motivaram, mas são mais emocionais que simbólicos – uma vez num carro de amigos a caminho das Ardennes belgas escrevi que a única forma de conseguirmos saír do nosso ambiente, desapegar-nos momentaneamente e deixar o corpo ir para outros hemisférios é saber que podemos regressar a um sítio onde o conforto – físico e emocional - nos recebe. Quem não tem nada não tem nada a perder mas quem tem e dá valor pode dar mais.

E apesar de achar que estas palavras são um bocado literatura de casa de banho, acho que até me safei bem na semântica. Não dei erros, e respeitei sujeito e predicado. Se me pudessem chamar rebelde agora, chamar-me-iam por outros motivos.

Estou demasiado abaixo do equador, e há algumas coisas que quero contar.

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